30 de março de 2022
Luís Gustavo Corbellini, Médico Veterinário, Doutor em Epidemiologia
Bactérias do gênero Salmonella são os principais agentes implicados em doenças transmitidas por alimentos (DTA) em todo o mundo. Os alimentos de origem animal são a principal fonte de infecção. No entanto, a bactéria vem sendo isolada em outros insumos como a pimenta – ingrediente comumente utilizado em temperos de alimentos -, bem como surtos causados por chocolate e até mesmo maconha contaminada já foram reportados.
Surtos associados a Salmonella, aliado a emergência de salmonelas patogênicas e resistentes aos antimicrobianos representam uma ameaça à saúde pública. Além das consequências associadas à infecção, o surgimento da cepa resistente à ciprofloxacina “S. Typhimurium DT 104” na Inglaterra no final da década de 90, por exemplo, aumentou ainda mais a preocupação das autoridades de saúde.
O gênero Salmonella é composto pelas espécies S.enterica e S.bongori e possui pelo menos 2449 sorovares identificados. Todas as cepas de Salmonella são potencialmente patogênicas para os humanos. A S. enterica é dividida em seis subespécies, onde o sorovar comumente isolado de humanos e produtos agropecuários pertencem à subespécie enterica.
Esses microrganismos possuem habilidade de sobreviver em condições adversas, como em ambientes com baixos níveis de nutrientes e com temperatura e pH subótimos, representando um desafio para a indústria de alimentos. A presença de Salmonella em diversos produtos agropecuários de origem animal e vegetal se dá pela existência de animais reservatórios, intensificação dos sistemas de produção, bem como a natureza ubiquitária do microrganismo.
O comércio internacional de produtos de origem animal e vegetal facilitou a disseminação de sorovares para diversas regiões geográficas, fazendo com que a vigilância e controle rigorosos em todos os níveis de produção de alimentos sejam adotados. Por esse motivo, as exigências de mercados com relação ao patógeno são muitas e variam de país para país, o que aumenta ainda mais a necessidade de medidas rigorosas de controle.
A infecção humana por salmonelas não tifóides é caracterizada por uma enterocolite autolimitante com período de incubação que pode variar entre 8 a 72 horas. Os sinais clínicos são caracterizados por dor abdominal severa – por vezes podendo ser confundida com apendicite -, diarreia, vômito e febre. Dependendo da idade e do estado imunológico do paciente, a infecção pode se tornar sistêmica e levar à morte, bem como ocasionar doença autoimune crônica, como artrite reativa.
Um estudo estimou que anualmente devam ocorrer 3,4 milhões de casos de Salmonella não tifóide no mundo, com uma letalidade que pode chegar a 20%. No entanto, as taxas de incidência e letalidade são influenciadas pelo nível de desenvolvimento do local e faixas etárias, sendo o continente africano o mais afetado (você pode ver esse artigo aqui).
No período de 2003 a 2018 foram notificados mais de 10 mil surtos de DTA no Brasil. De acordo com a Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, até 2008, a maior ocorrência de surtos foi associada à Salmonella spp. Com o passar dos anos, surtos de DTA causados por Escherichia coli, outro agente comumente encontrado em sistemas de produção animal, se tornaram mais frequentes.
No Rio Grande do Sul, 1437 surtos de DTA foram investigados no período de 2000 a 2012 e Salmonella spp. foi associado a 742 deles. Os dois principais fatores causais identificados durante as investigações foram matéria-prima sem inspeção e manutenção dos alimentos em temperatura ambiente (Fonte: CEVS-RS).
Algumas salmonelas importantes para a saúde pública são a S. Enteritidis, S. Typhimurium e S. Heidelberg. No entanto, estudos baseados na análise de dados de ocorrência em aves e humanos na União Europeia (UE) apontam que o alvo da vigilância são os seguintes sorovares: S. Enteritidis, S. Typhimurium (incluindo as variantes monofásicas) e S. Infantis. S. Kentucky foi proposta como o quarto sorovar devido ao recente espalhamento em vários países da UE e a multirresistência. Já o sorovar S. Heidelberg foi proposto como o quinto sorovar alvo da vigilância devido ao potencial de transmissão vertical em aves, bem como de resistência aos antimicrobianos.
Um estudo na qual eu participei, em que as fontes de infecção de Salmonella no Rio Grande do Sul foram avaliadas por meio da combinação da subtipagem microbiana de isolados humanos e animais com dados de surtos, identificou que os principais sorovares envolvidos foram o Enteritidis e Typhimurium. Você pode ver o estudo completo aqui.
Nesse estudo, alguns sorovares emergentes foram relatados, como o Infantis em carne suína, e o Newport em carne de Peru. No entanto, a principal fonte de infecção foi o ovo. Uma importante tendência encontrada ao longo do tempo foi a redução da importância do ovo com o incremento da carne suína como fonte de infecção de Salmonella.
A infecção por Salmonella é um problema de saúde pública mundial e, por isso, é fator crítico nas exportações de produtos de origem agropecuária. Nesse sentido, a abordagem de Saúde Única precisa sair do discurso, haja visto a imensa interface entre saúde animal, meio ambiente e saúde humana que o tema possui. É impreterível conhecer, de maneira tempestiva e contínua, os impactos dos controles aplicados na cadeia de produção sobre a saúde pública. Para isso, os sistemas de vigilância sanitária e epidemiológica em saúde e as monitorias oficiais de produtos de origem animal precisam conversar. É um longo caminho, mas que precisa ser percorrido.
Ao, T. T., Feasey, N. A., Gordon, M. A., Keddy, K. H., Angulo, F. J., & Crump, J. A. (2015). Global Burden of Invasive Nontyphoidal Salmonella Disease, 20101. Emerging Infectious Diseases, 21(6), 941–949. https://doi.org/10.3201/eid2106.140999
D’aoust, J. (2001). Salmonella (R. G. Labbé & S. García, Eds.). Jhon Wiley & Sons, Inc.
Goldberg, M. B., & Stamm, L. M. (2016, June 2). Infecções no Trato Gastrointestinal. https://www.medicinanet.com.br/conteudos/acp-medicine/6751/infeccoes_no_trato_gastrointestinal.htm
Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. (2019). Vigilância em Saúde no Brasil 2003-2019.
Neto, W. S., Leotti, V. B., Pires, S. M., Hald, T., & Corbellini, L. G. (2021). Non-typhoidal human salmonellosis in Rio Grande do Sul, Brazil: A combined source attribution study of microbial subtyping and outbreak data. International Journal of Food Microbiology, 338, 108992. https://doi.org/10.1016/j.ijfoodmicro.2020.108992
Werber, D., Dreesman, J., Feil, F., van Treeck, U., Fell, G., Ethelberg, S., Hauri, A. M., Roggentin, P., Prager, R., Fisher, I. S., Behnke, S. C., Bartelt, E., Weise, E., Ellis, A., Siitonen, A., Andersson, Y., Tschäpe, H., Kramer, M. H., & Ammon, A. (2005). International outbreak of SalmonellaOranienburg due to German chocolate. BMC Infectious Diseases, 5(1), 7. https://doi.org/10.1186/1471-2334-5-7
Taylor, D. N., Wachsmuth, I. K., Shangkuan, Y., Schmidt, E. v., Barrett, T. J., Schrader, J. S., Scherach, C. S., McGee, H. B., Feldman, R. A., & Brenner, D. J. (1982). Salmonellosis Associated with Marijuana. New England Journal of Medicine, 306(21), 1249–1253. https://doi.org/10.1056/NEJM198205273062101
Salmonella parte 1: Correlação entre higiene no abate de suínos e o isolamento de Salmonella spp.