2 de março de 2022
Luís Gustavo Corbellini, Médico Veterinário, Doutor em Epidemiologia
Nesta série de artigos abordaremos diversos temas sobre o assunto Salmonella spp. em animais de produção: impactos na saúde pública e nas exportações, epidemiologia, higiene e abate. O objetivo do primeiro artigo da série é responder a seguinte pergunta: Por que em alguns dias de abate de suínos, mesmo com alto padrão de higiene, se detectam carcaças positivas para bactérias do gênero Salmonella?
Salmonella enterica possui uma série de sorovares, como a S. enterica Typhimurium, em que a transmissão se dá principalmente pela via fecal-oral. A eficiência da transmissão está relacionada com a quantidade de salmonelas eliminadas por gramas de fezes. Em determinadas circunstâncias, alguns animais – como suínos, aves e roedores – podem eliminar um grande número de bactérias nas fezes. Esses animais são conhecidos como “super-shedders”, ou super eliminadores da bactéria (em tradução livre).
Um fator chave para a transmissão é que alguns animais infectados podem se tornar portadores e eliminar Salmonella spp. de forma persistente por longos períodos, o que os tornam reservatórios. Carne e ovos contaminados constituem uma das principais fontes de infecção para os seres humanos.
Os suínos são importantes reservatórios de S. Typhimurium, geralmente apresentando infecção assintomática. Já nos seres humanos, esse sorovar provoca uma gastroenterite auto-limitante. A prevenção da salmonelose humana depende da redução da prevalência no campo, sendo que a implementação de medidas de intervenção eficazes depende da identificação de fatores de risco ligados às principais rotas de transmissão e de contaminação das carcaças e produtos.
A implementação de bons procedimentos de abate de suínos reduz as chances de contaminação das carcaças por salmonela, mesmo em lotes de terminação com alta soroprevalência. O contrário também é verdadeiro, o efeito do matadouro-frigorífico pode aumentar o número de carcaças positivas ao longo do processamento.
A família Enterobacteriaceae – as enterobactérias – inclui um grande número de bactérias, patogênicas ou não, que podem ser encontradas no ambiente ou no intestino de animais. Por essa razão, a contagem de enterobactérias é utilizada como indicador de higiene e de risco de contaminação por patógenos, sendo adotado pela União Européia [Commission regulation (EC) No. 2073, 2005].
Como a Salmonella spp. pertence à família das enterobactérias, é evidente que exista relação entre a contagem de enterobactérias (indicador de higiene e de risco) e o isolamento de salmonela nas carcaças. Um estudo microbiológico realizado em 13 grandes matadouros-frigoríficos de suínos em Santa Catarina reportou essa relação, como ilustrado na figura abaixo.
A figura acima, adaptada de Corbellini et al. (2016), ilustra a relação entre a contagem de bactérias da família Enterobacteriaceae (log de “Unidades Formadoras de Colônias” – UFC/cm²) e o isolamento de bactérias do gênero Salmonella da superfície de carcaças de suínos ao longo da linha de abate. Podemos dizer, então, que existe forte correlação entre as práticas de higiene aplicadas e a redução do risco de contaminação por salmonela, sendo que algumas etapas do abate são críticas para eliminação de salmonela enquanto outras contribuem para a sua disseminação.
No entanto, apesar da probabilidade do isolamento de bactérias do gênero Salmonella estar associada com o aumento da contagem de enterobactérias na superfície de carcaças, existe uma grande variação no isolamento do patógeno entre os dias de abate que não é explicada pela alta (ou baixa) contagem de enterobactérias. Em outras palavras, se observa dias de abate em que a média da contagem de enterobactérias obtida na monitoria microbiológica de carcaças é baixa, mas se encontra um grande número de carcaças positivas para salmonela. O contrário também é verdadeiro, onde a contagem de enterobactérias pode estar muito alta num determinado dia, mas com pouca ou nenhuma carcaça positiva para o patógeno.
Mas por que isso ocorre? A provável explicação para esse fato reside na existência de suínos que eliminam grande quantidade de salmonela nas fezes num determinado dia de abate, os “super-shedders” como explicado anteriormente. Um estudo realizado no Rio Grande do Sul quantificou salmonelas no conteúdo intestinal de suínos abatidos, onde a quantidade do patógeno variou amplamente entre os portadores, podendo chegar até 178 UFC/g fezes (2,25 log). Assim, os suínos portadores são uma das principais fontes de contaminação das carcaças durante o abate.
A monitoria microbiológica é uma ferramenta que, junto com as boas práticas, contribuem para o controle da contaminação microbiológica dos produtos. Os dados gerados e acumulados ao longo do tempo, se analisados de forma contínua e orientados a objetivos bem definidos, oferecem informações que são chaves para o entendimento do risco de contaminação por salmonela e sua correlação com a higiene.
Referências