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Análise de risco no campo da saúde pública, da saúde animal e no comércio internacional – afinal do que se trata?

Em meados de agosto de 2020 foi publicado na mídia que autoridades chinesas da província de Shenzen detectaram possíveis traços de SARS-CoV-2, vírus causador da COVID-19, em embalagens de frango de origem brasileira [1]. Ao divulgar tal afirmativa, as autoridades locais realizaram adequada análise de risco? O que tem a ver esse fato com “risco”, “análise de risco” ou “incertezas”? Voltaremos a ele mais adiante.

Presumo que o leitor já tenha ouvido falar em análise de risco, avaliação de risco, risco ou incerteza. A análise de risco é aplicada em diversas áreas da gestão empresarial, tais como: como gestão de projetos, gestão financeira, seguros, prevenção de desastres. Também tem sido amplamente utilizada no campo da segurança dos alimentos. No comércio internacional de produtos de origem animal e vegetal o uso da análise de risco tem crescido significativamente desde a implementação do Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias da Organização Mundial do Comércio em meados da década de 1990 (Acordo SPS) [2]. O Acordo prevê que “Os Membros assegurarão que suas medidas sanitárias ou fitossanitárias sejam baseadas em uma avaliação, conforme apropriado às circunstâncias, dos riscos para a vida ou saúde humana, animal ou vegetal, levando em consideração as técnicas de avaliação de risco desenvolvidas pelas organizações internacionais pertinentes”.

Assim, grande parte das pessoas que trabalham direta ou indiretamente com saúde pública, saúde animal ou com comércio de produtos de origem animal já se deparou com o termo “análise de risco.” Para entendermos a análise de risco precisamos compreender algumas nomenclaturas, pois existem muitas definições de risco e frequentemente eu vejo profissionais confundido análise de fatores de risco, uma abordagem médico-epidemiológica clássica, com análise de risco. Alguns tipos de estudos epidemiológicos são realizados para identificar fatores de risco por meio da estimativa de risco relativo (RR). Nesse caso, o risco significa a probabilidade de um evento adverso ocorrer caso os animais ou pessoas estejam expostas a algum fator de risco objeto da investigação.

Mas afinal, o que é risco e incerteza no contexto da análise de risco? De acordo com o Project Management Institute (PMI), risco é um evento, um fato, uma condição incerta que se ocorrer ela provocará um impacto [3]. Se a incerteza estiver associada a um impacto negativo, o risco é chamado de ameaça. A incerteza, neste caso, está ligada ao processo de aleatoriedade da natureza e aos limites da nossa compreensão [4]. Como Patrick Weaver descreveu em seu artigo intitulado “The meaning of risk in an uncertain world”: “Descrever algo como um risco é uma maneira conveniente de descrever um estado desconhecido que pode ocorrer no futuro (e, consequentemente, pode não ocorrer) … Se algo ocorrer (por exemplo, o pôr do sol), não há incerteza e, portanto, nenhum risco” [3].

Risco não é sinônimo de incerteza. Uma forma interessante de explicar o conceito de incerteza é quando falamos de amostragem. Por exemplo, um estudo soro-epidemiológico estimou uma prevalência de anticorpos de SARS-CoV-2 (vírus causador da COVID-19) de 5,4% (IC 95%: 4,8% – 6,0%) em uma amostra da população da região Norte do Brasil [5]. O resultado da estimativa é acompanhado do seu intervalo de confiança. O que significa o IC 95%, sigla do intervalo de confiança? Ele indica a confiabilidade de uma estimativa. Poderíamos dizer que estamos 95% confiante de que o intervalo entre 4,8% e 6% contenha o verdadeiro valor da prevalência de SARS-CoV-2 para a população da região Norte do Brasil. Veja que eu posso especificar o quão confiante estou acerca da estimativa, mas mesmo assim existe 5% de probabilidade dela estar errada. Ou seja, estamos falando de algo incerto e como se vê, incertezas não necessariamente estão associadas a algum impacto. O risco, por sua vez, está associado a uma incerteza que pode provocar um impacto, mas que é possível estabelecer cenários e ter alguma ideia de chance de ocorrência de cada um deles.

Dessa forma, fica implícito que não podemos prever com exatidão o que pode ocorrer diante de um determinado fato ou evento. Os “fatos” ou “eventos” que podem estar associado a algum impacto (ou seja, risco) devem ser identificados por um gestor para, então, proceder com a análise de risco. A análise de risco é uma ferramenta que possui várias etapas, que inclui a identificação dos riscos (ou perigos), a avaliação dos riscos, identificação das opções de mitigação dos riscos e comunicação dos riscos. Veja que aqui reside outra confusão comum, que é a utilização do termo avaliação de risco e análise de risco de forma intercambiável. A análise de risco é um processo mais amplo em que nele está inserida a avaliação de risco. É na avaliação de risco que se desenvolve o modelo para estimar os riscos propriamente dito, que pode ser qualitativo ou quantitativo, onde nesse último as incertezas são modeladas por distribuições de probabilidades.

O risco possui duas dimensões: a probabilidade de ocorrência de um determinado evento e os impactos associados. Assim, ao avaliarmos o risco de forma qualitativa, por exemplo, sua estimativa envolve quantificar a probabilidade de ocorrência de um determinado evento e os seus possíveis impactos, que devem representar a magnitude das consequências.

Um estudo encontrou evidências sorológicas de transmissão de coronavírus de morcegos para pessoas [6]. Quem poderia imaginar que a passagem do vírus SARS-CoV-2 de animais para seres humanos pudesse ter uma consequência tão catastrófica como a pandemia da COVID-19? Sobre esse caso, citamos um exemplo de sucesso na prevenção do risco quando o Centro de Controle de Doenças da Coréia do Sul (KCDC) aplicou o processo de análise de risco para estimar os riscos e, assim, auxiliar na tomada de decisão e comunicação de riscos diante da eminência da pandemia da COVID-19. O risco foi determinado usando três algoritmos separados: 1) probabilidade de importação do vírus causador da COVID-19, 2) probabilidade de transmissão e 3) impacto da doença. A aplicação da ferramenta auxiliou os gestores na decisão sobre quais medidas de enfrentamento da COVID-19 em sua fase inicial seriam mais apropriadas [7]. Medidas para detecção precoce, redução da probabilidade de entrada e disseminação do SARS-CoV-2 por meio de estratégias de triagens em aeroportos e restrição de voos foram determinadas conforme os resultados da avaliação de risco.

Metodologias específicas e processos transparentes de análise e avaliação de risco têm sido desenvolvidos desde a implementação do Acordo SPS, tornando-se imperativo no comércio internacional de alimentos. E nesse sentido, retorno ao caso de detecção de traços do vírus SARS-CoV-2 em amostras de asas de frango congelados importadas do Brasil. Assumindo que houve detecção do agente, temos um exemplo de um evento de risco, ou seja, detectar o agente causador da COVID-19 em alimentos ou embalagens e os possíveis impactos desse fato. Sem entrar no mérito da transparência do processo, as consequências desse evento já foram observadas, como a barreira sanitária de importação de frango brasileiro imposta pelas Filipinas, por exemplo.

Como o próprio acordo SPS preconiza, como premissa legítima, a proteção da saúde animal ou vegetal dentro de um território de um país membro, deve estar baseada em ciência. Nesse caso, a avaliação de riscos é a ferramenta prescrita para justificar a aplicação de medidas sanitárias, como as barreiras de importação. Portanto, o simples fato da detecção do vírus no produto não implica necessariamente em riscos para a saúde, pois além do isolamento, deve haver uma carga viral suficiente para que o produto sirva de fonte de infecção para alguma pessoa. No mundo ideal, isso deveria ter sido demonstrado por uma avaliação de risco, caso contrário, se trata de uma barreira injustificada velada sob a tutela do “princípio da precaução.”

 

[1] Comunicação ABPA, “NOTA CONJUNTA – ABPA E O.A.RS,” 13/08/2020, 2020. [Online]. Available: https://www.asgav.com.br/index.php/noticias-interna/nota-conjunta-abpa-e-o-a-rs-1693. [Accessed: 20-Aug-2020].

[2] WTO, “The WTO Agreement on the Application of Sanitary and Phytosanitary Measures (SPS Agreement).” [Online]. Available: https://www.wto.org/english/tratop_e/sps_e/spsagr_e.htm. [Accessed: 23-Aug-2020].

[3] P. Weaver, “The meaning of risk in an uncertain world,” 19/05/2008, 2008. [Online]. Available: https://www.pmi.org/learning/library/project-risks-uncertain-world-8392. [Accessed: 20-Aug-2020].

[4] P. Gardoni and C. Murphy, “A Scale of Risk,” Risk Anal., vol. 34, no. 7, pp. 1208–1227, 2014.

[5] P. Hallal et al., “Remarkable variability in SARS-CoV-2 antibodies across Brazilian regions: nationwide serological household survey in 27 states,” medRxiv, p. 2020.05.30.20117531, 2020.

[6] H. Li et al., “Human-animal interactions and bat coronavirus spillover potential among rural residents in Southern China,” Biosaf. Heal., vol. 1, no. 2, pp. 84–90, 2019.

[7] I. Kim, J. Lee, J. Lee, E. Shin, C. Chu, and S. K. Lee, “KCDC risk assessments on the initial phase of the COViD-19 outbreak in Korea,” Osong Public Heal. Res. Perspect., vol. 11, no. 2, pp. 67–73, 2020.