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Análise de dados e interpretação dos resultados em investigação de surtos de doenças em animais

15 de fevereiro de 2022

Luís Gustavo Corbellini, Médico Veterinário, Doutor em Epidemiologia

Surto significa aumento repentino do número de casos de doenças em animais em um curto intervalo de tempo. Ao contrários de epidemias, surtos são confinados a uma região, propriedade ou estabelecimento rural. Publicamos um artigo anteriormente, que você pode ler aqui, descrevendo os princípios básicos de uma investigação de surto.

Coleta e análise de dados epidemiológicos são partes essenciais de uma investigação de surto. Neste artigo abordaremos alguns princípios estatísticos básicos e a interpretação dos resultados utilizando dados de um caso real.

Dado que o objetivo principal da investigação de um surto é chegar a uma conclusão mais precisa sobre as suas causas, a coleta e análise dos dados irão contribuir para atingir esse objetivo.

A análise dos dados auxilia a identificar a existência de algum padrão, que são úteis para identificar possíveis causas. Os dados chaves que precisam ser coletados durante uma investigação são: 1) relacionados ao tempo (quando começou e ocorrências diárias); 2) relacionados à população (categoria de animais); 3) relacionados ao espaço (onde estão os afetados) e 4) por quê? (identificação de possíveis fatores que possam ter iniciado o surto).

No artigo anterior (veja aqui) ilustramos um surto de aborto, natimortalidade/mortalidade neonatal ocorrida num estabelecimento leiteiro no Uruguai em 2017-2018. Após uma visita para investigação à campo, dados chaves de 142 fêmeas foram coletados e organizados em uma planilha (Figura 1). A tabela ilustra um fragmento do banco de dados.

Figura 1. Organização dos dados de uma investigação de um surto de aborto e natimortalidade.

Note que as ocorrências de cada animal (“id”), como os casos de aborto, natimortalidade e nascidos vivos foram organizados em cada linha da planilha. Outros dados coletados foram o mês de gestação, data de ocorrência e semana epidemiológica, categoria animal (vaca vs. novilha), bem como a origem do terneiro e do aborto ou natimorto (touro utilizado para repasse ou inseminação artificial – IA). O proprietário também havia realizado testes sorológicos para neosporose, importante causa de aborto em bovinos.

Com esses dados em mãos foi possível construir uma curva epidêmica. Essa curva nada mais é do que o número de casos por período de tempo e é muito útil para visualizar os padrões de ocorrência no período. O gráfico abaixo (Figura 2) ilustra uma curva epidemiológica desenvolvida no software livre R, mas que pode ser facilmente construída no Excel.

Figura 2. Curva Epidêmica com o número de caso ao longo do período

Note que as ocorrências foram plotadas por semana epidemiológica (“W”, do inglês week) desde outubro de 2017 (W42), quando iniciaram os abortos, até outubro de 2018 (W40). No total foram 15 abortos (quadrados azuis no gráfico) e 23 casos de natimortalidade (quadrados verdes). Foi possível observar que os abortos se concentraram no início do período avaliado, enquanto os casos de natimorto se deram principalmente a partir da semana 26 (W26, junho de 2018).

A curva epidêmica fornece uma visão temporal dos casos, que é importante para explorar possíveis relações causais a partir de informações sobre eventos de risco que possam ter ocorrido no período. Nesse caso, resumidamente, foi possível observar que houve dois fenômenos distintos, de aborto e natimortalidade, bem como o segundo pico de natimortalidade coincidiu temporalmente com a introdução de um touro para repasse na propriedade.

Uma vez suspeitando-se do touro, observou-se que o mesmo tinha um DEP (diferença esperada na progênie) positivo para o peso ao nascer. Essa característica pode dificultar o parto, principalmente em novilhas. Nota-se aí que hipóteses sobre fatores de risco, dada a condução da investigação, devem ser testadas.

Focando no caso de natimortalidade, a hipótese testada foi de que as novilhas tinham maior risco de ter casos de natimortos. A premissa é de que as novilhas têm maiores chances de ter parto distócico do que vacas. Aliado ao fato da falta de assistência ao parto relatada durante a investigação e touro com DEP positivo para o peso ao nascer, a provável causa da mortalidade periparto foi a distocia.

Dados precisos sobre a confirmação da prenhez do touro vs. IA estavam incompletos e, assim, os dados das novilhas foram utilizados como proxy. Essa suposição é válida, pois o touro foi repassado no lote de novilhas e nas vacas vazias e esperávamos que as taxas fossem significativamente maiores em novilhas.

Assim, uma vez avaliada a curva, partiu-se para os cálculos das taxas de natimortalidade. Essa análise possibilita calcular o Risco Relativo (RR), importante indicador de fator de risco. Para fazer isso, basta construir uma tabela 2×2 por meio de uma tabela dinâmica (no software Excel, por exemplo), comparando as taxas, nesse caso, entre vacas e novilhas. O quadro abaixo (Figura 3) ilustra uma tabela 2×2 comparando as taxas de natimortalidade entre 47 novilhas (fator de risco, linha superior) e 80 vacas.

Figura 3. Tabela 2 x 2 com as ocorrências de natimortalidade por categoria animal

A taxa total de natimortalidade no período foi de 18,1%, muito maior que a média de 7,4% observada no país em que a propriedade se localiza (Uruguai). Para calcular o RR, basta dividir a taxa de natimortalidade das novilhas (suspeitas de ter maior risco de parto distócico) pelas taxas das de natimortalidade das vacas (27,6/12,5 = 2,2). O RR maior do que 1 indica que animais expostos ao suposto fator – nesse caso, o fato de ser novilha – apresentam maior risco quando comparados aos não expostos. Assim, o risco de natimortalidade entre novilhas foi 2,2 vezes o risco de natimortalidade entre as vacas. 

Para confirmar estatisticamente essa hipótese pode-se realizar o teste do qui-quadrado. A maneira mais fácil é utilizar o software EpiInfo do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC). Esse software é bem simples de operar. Com a opção StatCalc > Tabela 2×2 é só entrar com os dados do quadro acima diretamente na tabela. O resultado é a estimativa do RR (“Relative Risk”), seu intervalo de confiança e o p-valor (Figura 4). 

A figura 4 ilustra a interface do aplicativo EpiInfo para celular com os dados da Tabela 2×2 citada anteriormente. O p-valor foi de 0,03 (<0,05), significando que existe associação entre categoria animal (i.e., novilhas com maior risco) e taxas de natimortalidade.

Conclusões

A análise de dados de uma investigação de surto, de modo simplificado, consiste na construção de uma curva epidêmica para visualizar os números de casos ao longo do tempo e elaboração de testes de hipóteses. A curva auxilia na identificação de possíveis fatores causais, caso o aumento do número de casos tenha ocorrido depois de um período de tempo compatível com a exposição a um possível fator de risco. O próximo passo é testar hipóteses elaboradas durante a investigação e calcular o RR. As hipóteses são formuladas com base na identificação de fatores de risco durante a investigação.

O caso real citado, simplificado para fins didáticos, teve sua resolução somente após uma minuciosa investigação epidemiológica. Após esse fato, o touro foi descartado e se corrigiu o manejo de parto. Após isso, as taxas de perdas neonatais chegaram a níveis aceitáveis.

Recomendamos a leitura do seguinte material: Veterinary Epidemiology – An Introduction. Capítulo sobre investigação “Outbreak Investigation” na página 52. Acesse aqui: https://bit.ly/3AWTyB9

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