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Investigação de surtos na população animal – maior chance de solucionar o problema!

Neste artigo abordarei uma ferramenta epidemiológica clássica que é a investigação de surto. Aliás, o marco da epidemiologia é a clássica investigação da epidemia de Cólera em Londres (1854) realizada por John Snow, considerado o pai da epidemiologia.

Surto significa aumento repentino do número de casos em um curto intervalo de tempo, confinados a uma região, propriedade ou estabelecimento. A diferença para o conceito de epidemia e pandemia reside na questão de abrangência. Epidemia é quando o aumento do número de casos ocorre em diversas regiões de uma cidade, Estado ou País e pandemia é quando uma doença atinge diversos continentes, a exemplo da COVID-19. Deste modo, quando nos deparamos com o aumento súbito de ocorrência de alguma condição clínica em uma propriedade, estamos falando de um surto.

O objetivo principal da investigação de um surto é chegar a uma conclusão mais precisa sobre as suas causas. Uma vez que descobrimos as suas causas, ou seja, as fontes de infecção ou fatores de risco, utilizamos essas informações para prevenir futuros eventos ou mesmo para interromper o ciclo de transmissão.

Quando alguns animais estão apresentando sinais clínicos comuns a diversas doenças transmissíveis, procuramos identificar o agente causador por meio da coleta e envio de material para diagnóstico laboratorial. A investigação de surto também é um diagnóstico, só que em nível populacional, na qual o resultado final são as prováveis causas da doença num determinado rebanho (agente, fontes de infecção, fatores de risco, população mais afetada, etc.). Assim, laudos microbiológicos, patológicos e toxicológicos que, agregados ao processo de coleta sistemática de informações e interpretação dos resultados, são componentes da investigação de um surto.

Diagnóstico, portanto, é um dos componentes chaves de uma investigação de surto. Retorno aqui ao pai da epidemiologia, o médico John Snow, para fazer uma indagação ao leitor: Como ele identificou a causa da epidemia de cólera, doença causada pela bactéria Vibrio cholerae, se em 1854 não se sabia da existência de agentes causadores de doenças? A teoria microbiana da doença só surgiu anos depois, a partir dos trabalhos iniciais de Louis Pasteur e consolidados pelos trabalhos de Robert Koch [1]. John Snow identificou que a fonte causadora da cólera em Londres era a água contaminada, especificamente a da bomba d’água localizada na rua “Broad Street”. Hoje essa bomba é visita obrigatória para profissionais de saúde pública!

Na verdade John Snow realizou uma exímia investigação de epidemia em pleno século XIX, seguindo os princípios da ciência e da epidemiologia, veja bem, moderna! Ele iniciou com a observação dos casos de morte e fez a seguinte afirmação (tradução livre): “Descobri que quase todas as mortes ocorreram a uma curta distância da bomba.” Ele foi um dos primeiros a utilizar os princípios básicos da análise espacial ao mapear os casos e relacionar com a bomba d’água. Estamos falando de um princípio importante da investigação de surto: identificar padrões. John Snow identificou que havia uma aglomeração de casos maior ao redor da bomba da “Broad Street”. A partir daí, ele formulou a hipótese de que a água daquela bomba era a fonte causadora da doença. Com uma coleta de dados a campo impecável, ele comparou as taxas de mortalidade de três grupos de empresas fornecedoras de água na época. A taxa de mortalidade a cada 10.000 domicílios atendidos pela empresa SouthWark & Vauxhall foi pelo menos 9 vezes maior que as taxas da segunda maior empresa da época. A bomba de “Broad Street” pertencia a empresa SouthWark & Vauxhall. Aqui vemos outro princípio: coleta de dados e comparação de indicadores, nesse caso, o número óbitos ajustados pela quantidade de domicílios atendidos pelas empresas fornecedoras da época. E ele não parou por aí, coletou amostras de água e investigou-as no microscópico. Ciente de que sua hipótese estava correta, de que a água era a fonte causadora, ele insistiu para que as autoridades interrompessem o fornecimento da água daquela bomba específica. Qual não foi a surpresa das autoridades da época? A mortalidade começou a reduzir! Essa investigação possui extensa biografia e eu deixo aqui uma referência de um site interessante para quem quiser saber mais sobre esse feito [2].

Na investigação de surto, a primeira coisa a se realizar é confirmar a existência do problema alegado. Isso porque existem muitas flutuações de ocorrências de doenças endêmicas nas populações de animais que podem levar a crer que o aumento aparente do número de casos seja realmente maior que o esperado. Aqui uma ressalva: sem o registro de ocorrência de doenças e outros indicadores chaves em um estabelecimento, a investigação fica prejudicada. Isso ocorre porque, nessa etapa, é muito importante comparar os dados atuais da propriedade com o histórico de ocorrências. A seguir, o investigador deve definir de forma precisa o que são os “casos”, por exemplo, “aborto no primeiro e segundo terços de gestação, principalmente em vacas primíparas” ou “diarreia em suínos na terminação com 50 dias de alojamento”.

Depois que foi estabelecido que realmente existe um problema e foi definido o que seriam os casos, se procede com a coleta de material para diagnóstico. Até aqui não há nenhuma novidade, no entanto, ressalto que o diagnóstico faz parte da investigação. Digo isso, porque diante de surtos de doenças transmissíveis, na minha experiência profissional, eu vejo profissionais focados somente na detecção do agente. Na verdade, devemos avançar nesse diagnóstico e, por exemplo, visitar o estabelecimento, entrevistar o produtor e coletar os dados chaves para a investigação. A entrevista com o produtor e com alguns de seus funcionários, por exemplo, pode revelar informações cruciais para solucionar o problema. Eu pude acompanhar um caso de um surto muito intenso de abordo bovino que a causa havia sido o uso de medicamento não recomendado para animais prenhes. A pista foi encontrada numa lata de lixo do estabelecimento durante a visita ao estabelecimento, em que foram encontrados inúmeros frascos do medicamento. Aqui se nota a importância do olhar investigativo que se deve ter durante a visita ao estabelecimento.

Que dados chaves devem ser coletados? Os dados e informações que precisam ser coletados durante a investigação de um surto são aqueles que nos permitam responder as seguintes perguntas chaves:

Quando, quem, onde e por que devem ser os seus guias!

Um surto pode iniciar por diversas causas: introdução de um animal infectado, algum lote de ração contaminado, entrada de pessoas ou fômites contaminados no estabelecimento, um novo funcionário, etc. A partir da data do primeiro caso, a exposição a esses fatores de risco tem que anteceder a data dos primeiros casos de maneira compatível com o período de incubação da doença. Tem que haver uma linha temporal lógica em que a exposição a um determinado fator anteceda a ocorrência da doença.

Ao investigar quem são os afetados, tudo o que pode diferenciá-los dos não afetados, deve ser avaliado. Por exemplo, a idade dos afetados é diferente das dos não afetados? A ração dada aos animais afetados é a mesma dos não afetados? Tal como John Snow fez durante a sua investigação, precisamos comparar as taxas de ocorrência de acordo com fatores que acreditamos ser uma fonte causadora ou agravante da doença. Estamos falando de técnicas simples de comparação de indicadores, em que podemos calcular o risco relativo (RR).

Vamos a um exemplo rápido vivenciado por mim. Em agosto de 2018, no laboratório da instituição que eu estava realizando um estudo no Uruguai, chegaram dois fetos bovinos abortados de um estabelecimento leiteiro. O proprietário alegou que estava com problema de aborto desde fevereiro do mesmo ano. No material desses fetos não foi isolado nenhum agente infeccioso, mas o resultado da patologia revelou uma pista: o feto apresentava aeração pulmonar e possível viabilidade no momento do nascimento. Estamos diante de um problema de aborto ou de natimorto? Nota-se a importância de definição do problema. Ao visitar a propriedade, entrevistar o produtor, coletar e analisar o histórico de dados desde o ano anterior, algumas questões puderam ser esclarecidas. O estabelecimento havia apresentado dois problemas em épocas distintas: um aumento do número de casos de aborto entre 4 a 6 meses de gestação entre os meses de outubro de 2017 a maio de 2018 e um problema de natimortalidade e mortalidade neonatal entre julho e agosto de 2018 (Quando!). Por outro lado, o produtor e veterinário responsável estavam alegando um problema de aborto.

Tanto o número de aborto como o de natimorto estavam realmente maiores que no mesmo período do ano anterior. Focando no caso de natimortos, o estabelecimento teve 23 casos de um total de 142 vacas e novilhas. A coleta e análise de dados permitiu avaliar que o risco de natimortos foi 2,2 vezes maior em novilhas (Quem!). Veja que já definimos que o problema de natimorto iniciou em julho de 2018 e que ocorrera principalmente em novilhas. Porque em novilhas? As novilhas estavam em piquetes separados (Onde!), mas nada indicava que essa era a razão do problema. Ao questionar o que houve de diferente entre as novilhas e vacas, observou-se que a maior parte das novilhas receberam um repasse de um touro que havia sido recém comprado (Por que!). O número de natimortos aumentou expressivamente somente após a introdução desse animal. Bingo! O touro tinha um alto DEP (Diferença Esperada na Progênie) positivo de peso ao nascer e juntando com o resultado da necropsia, que indicava que o animal havia respirado, a hipótese era de problemas no momento do parto e de manejo. O problema se agravou porque o proprietário estava com falta de funcionários para a auxiliar na época de parição. Foi recomendado não utilizar mais o touro no repasse de novilhas bem como maior atenção ao manejo do parto.

Ao definir que o principal problema era o de natimortalidade, investigar qual a população foi mais afetada, comparar as taxas, e identificar os possíveis fatores causadores, chegou-se ao diagnóstico final. Como se pode ver, se estivéssemos nos baseado somente no diagnóstico laboratorial, não teríamos chegado a essas conclusões!

A investigação de surto exige treinamento e criação de protocolos, pois se trata de uma procedimento que exige coleta sistemática e análise de dados. É, portanto, uma ferramenta que pode ser extremamente útil se incorporada nos planos estratégicos da agroindústria, pois pode solucionar diversos problemas sanitários.

 

Referências

[1] BBC, “19th Century Medicine Part 1.” [Online]. Available: https://www.bbc.co.uk/bitesize/guides/ztpw4j6/revision/2. [Accessed: 11-Sep-2020].
[2] R. Frerichs, “John Snow site.” [Online]. Available: https://www.ph.ucla.edu/epi/snow.html. [Accessed: 11-Sep-2020].